Publicado no CONJUR em 5 de fevereiro de 2023, 6h04
Por Jacqueline Mayer da Costa Ude Braz e Tiago Carneiro da Silva
Nos últimos anos, especialmente após a pandemia e o período em que todos ficaram confinados, obrigados a adaptarem suas atividades e desenvolvê-las de casa, a sociedade passou a se questionar se, com as ferramentas tecnológicas de que dispomos, o exercício profissional seria ou não substancialmente alterado. Não é diferente no mundo jurídico, especialmente considerando a emergência de ferramentas que utilizam inteligência artificial (IA), que têm se tornado cada vez mais comuns.
Na legislação vigente, não há uma definição de IA. Contudo, dois projetos de lei (PL) a mencionam. O primeiro, PL 21/2020, afirma expressamente que ela não se confunde com o software, podendo ser entendida como um "sistema baseado em processo computacional que pode, para determinado conjunto de objetivos definidos pelo homem, fazer previsões e recomendações ou tomar decisões que influenciam ambientes reais ou virtuais". O PL 240/2020 menciona que a IA deve atender à "inovação e tecnologia, suas máquinas, robôs e sistemas de informática".
Mas, do ponto de vista técnico, o que é IA?
"A inteligência artificial (IA) é a simulação da inteligência humana por meio de máquinas, especialmente computadores. Ela é utilizada para desenvolver sistemas capazes de realizar tarefas que normalmente exigiriam inteligência humana, como reconhecimento de padrões, aprendizado automático e tomada de decisão".
Ninguém melhor do que uma IA para se descrever. O parágrafo foi desenvolvido pelo Chat GPT, em poucos segundos, após uma provocação simples de uma voz humana: "O que é IA e para que serve?" Mas como podemos definir o Chat GPT?
"O ChatGPT é um modelo de linguagem baseado em deep learning, treinado pela OpenAI. Ele é baseado no modelo GPT-3 (Generative Pre-trained Transformer 3), e é projetado para gerar texto de alta qualidade em várias tarefas de linguagem natural, como geração de texto, tradução automática, resposta a perguntas e muito mais. Ele foi treinado com milhões de exemplos de texto e é capaz de gerar respostas coerentes e naturalmente escritas para perguntas e comandos. Ele é usado principalmente para aplicações de conversação, como assistentes virtuais e chatbots".
Essa descrição também foi formulada pelo próprio ChatGPT. Para saber mais um pouco sobre suas capacidades, questionamos: "A IA é capaz de conceituar?" Eis a resposta apresentada por ele:
"A IA é utilizada em muitos campos, incluindo robótica, reconhecimento de fala, análise de dados, jogos e assistentes virtuais. A inteligência artificial é capaz de aprender e reconhecer padrões, mas ainda não é capaz de compreender ou conceituar de forma semelhante a como os humanos o fazem. A compreensão e a capacidade de conceituar são habilidades cognitivas complexas que ainda estão sendo estudadas e desenvolvidas na área da IA. Alguns avanços recentes, como a criação de redes neurais profundas, permitiram que a IA realizasse tarefas complexas, como a tradução automática e a geração de texto, mas ainda há muito por ser feito para alcançar uma inteligência artificial verdadeiramente consciente e capaz de compreender e conceituar".
A resposta acima nos leva a refletir sobre as nossas próprias capacidades humanas. O IA ainda não é capaz de ter consciência de si próprio e do mundo em que se encontra, é incapaz de construir algo, completamente, novo, pois está sempre atrelado a dados históricos. Por isso, a pertinência do questionamento acima e o alerta do ChatGPT sobre sua incapacidade de conceituar.
Como bem destaca Byung-Chul Han [1], "o saber no sentido autêntico só é possível no nível do conceito" e é, justamente, por isso, que "A inteligência artificial não é capaz de pensar". "Ela é inteligente demais para ser uma idiota", complementa, o autor, irônico e preciso: é o idiotismo que dá peculiaridade ao pensar autêntico e original, somente atribuído ao pensar humano, orgânico e filosófico, que tem condições dar um salto no inexplorado, indo além do que está definido.
A limitação, contudo, não diminui a perplexidade que se engrandece a cada nova interação com diferentes IA que se desenvolvem, dia após dia, de forma assustadoramente rápida. Se, até o momento, a IA é incapaz de substituir o pensar humano, em seu nível mais complexo, é incomparavelmente mais eficiente em atividades mais rudimentares, mas não menos necessárias. Para essas, a substituição dos humanos não somente é inevitável, como bem-vinda.
Em uma sociedade que nos afoga em informações, nos desafiamos, cada vez mais, em atividades que exigem concentração, memorização e sistematização de dados. Ainda, precisamos compreendê-los, criar novas informações e, não raras vezes, agir rapidamente, com base nelas. Profissões com elevadas e constantes demandas intelectuais, como a advocacia, já enfrentam esse desafio diariamente e a tendência é de intensificação desse quadro. Mas, como relembra Tacio Lacerda Gama [2], ao analisar as particularidades da sociedade em rede, "o número exponencialmente maior de dados e números não significa, necessariamente algo bom ou ruim", pois, como o autor complementa, "o relevante é ser funcional e não simples".
O aprimoramento das funcionalidades institucionais é, justamente, a característica perseguida pela implementação progressiva da IA. E, desse modo, assim como outras atividades, a advocacia também terá sua forma de produção modificada para incremento de eficiência, ao menos para quem assim o deseje. As oportunidades estão na mesa e há muitos investimentos públicos e privados para exploração das potencialidades deste ambiente de inovação.
Objetivamente, como? Questionamos ao ChatGPT, que nos responde prontamente:
"Os maiores desafios da advocacia nos próximos anos incluem a necessidade de se manter atualizado com as constantes mudanças nas leis e regulamentos, a competição crescente dos escritórios de advocacia e a complexidade de lidar com a profusão exponencial de informações. A inteligência artificial pode colaborar com a profissão de diversas formas, tais como:
Automatizando tarefas rotineiras, como pesquisa jurídica e análise de documentos, o que pode permitir que os advogados se concentrem em questões mais complexas e criativas.
Ajudando a identificar e rastrear informações relevantes, como decisões judiciais anteriores e regulamentos, que podem ser úteis no desenvolvimento de argumentos jurídicos.
Auxiliando na análise de grandes quantidades de dados, como contratos e acordos, para identificar possíveis problemas e riscos.
Previsão de decisões judiciais com base em dados históricos e tendências.
Ajudando no gerenciamento de casos, como organização de documentos e notificações automatizadas".
No universo do Direito Tributário, o uso de IA já vem sendo feito há alguns anos. A própria Receita Federal conta com o Sistema de Seleção Aduaneira por Aprendizado de Máquina (Sidam). Os dados das declarações de importação apresentadas pelos contribuintes desde 1997 no Siscomex alimentam o Sisam que faz a seleção das declarações que vão ser submetidas aos canais de conferência, bem como as mercadorias que serão individualmente verificadas.
Também no âmbito da Receita, o cruzamento entre informações oferecidas pelos contribuintes e obtidas por outras fontes somente é possível graças ao T-Rex. Além disso, as buscas de dados relacionados a eles, além dos perfis utilizados nas redes sociais e na internet, também são feitas pelo T-Rex.
O uso de IA não se subssome aos processos de tomada de decisão automática implementados pela administração tributária. Os contribuintes também se utilizam de IA como ferramenta de predição para analisar riscos de autuação e de pesquisa de tendências a partir das decisões administrativas e judiciais proferidas a respeito de determinado tema. A utilização da IA na advocacia tributária será discutida no II Congresso Internacional de Direito Tributário, em Trancoso (BA), de 3 a 5 de maio de 2022, que tem como tema "A tributação da sociedade em rede".
Esses usos tendem a aumentar enormemente a partir dessas novas ferramentas de IA, que, de modo algum, devem ser consideradas inimigas da advocacia. O Google, por exemplo, utiliza inteligência artificial em vários aspectos do seu buscador, para quem muitos de nós formula diariamente inúmeros questionamentos e obtém, em seus resultados, a resposta que procura para a realização de um trabalho.
É fato que a IA terá impactos significativos na economia e no mercado de trabalho. Algumas tarefas que antes eram realizadas por seres humanos podem ser automatizadas, o que pode levar à perda de empregos em certas áreas.
A preocupação, contudo, não deve ser vertida em um ludismo moderno. A IA, utilizada de forma ética, transparente e consciente, tende a melhorar a qualidade de vida dos seus usuários, criar novas oportunidades de negócios e melhorar a eficiência em muitos segmentos, como já praticado no ambiente tributário nacional.
Jacqueline Mayer da Costa Ude Braz é doutora e mestre em Direito Tributário pela USP, professora, advogada e pesquisadora do IAT.
Tiago Carneiro da Silva é mestre em Direito Tributário pela USP, professor, advogado e pesquisador do IAT.
[1] Han, Byung-Chul. Não coisas: Reviravoltas do mundo da vida. 2022. Petrópolis: Editora Vorazes, p. 52
[2] Gama, Tacio Lacerda. Normas de interpretação no direito tributário: uma proposta dialógica para interpretação, argumentação e fundamentação na sociedade em rede. Tese (Livre docência) – Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2022.
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